Enfim, voltando atrás... esta capacidade do António Gedeão para encaixar a nossa condição humana no seio da implacabilidade das Leis da Física encontrei-a eu no poema que se segue, o primeiro poema que me lembro de ser capaz de apreciar. No 8º ano, talvez?
Lágrima de preta
Encontrei uma preta
que estava a chorar,
pedi-lhe uma lágrima
para a analisar.
Recolhi a lágrima
com todo o cuidado
num tubo de ensaio
bem esterilizado.
Olhei-a de um lado,
do outro e de frente:
tinha um ar de gota
muito transparente.
Mandei vir os ácidos,
as bases e os sais,
as drogas usadas
em casos que tais.
Ensaiei a frio,
experimentei ao lume,
de todas as vezes
deu-me o que é costume:
Nem sinais de negro,
nem vestígios de ódio.
Água (quase tudo)
e cloreto de sódio.
Encontrei uma preta
que estava a chorar,
pedi-lhe uma lágrima
para a analisar.
Recolhi a lágrima
com todo o cuidado
num tubo de ensaio
bem esterilizado.
Olhei-a de um lado,
do outro e de frente:
tinha um ar de gota
muito transparente.
Mandei vir os ácidos,
as bases e os sais,
as drogas usadas
em casos que tais.
Ensaiei a frio,
experimentei ao lume,
de todas as vezes
deu-me o que é costume:
Nem sinais de negro,
nem vestígios de ódio.
Água (quase tudo)
e cloreto de sódio.
Adianto desde já que estou bastante conformado com esta condição. Daí eu dizer que, se sou Materialista, não é por reduzir os Homens a calhaus, mas por elevar os calhaus a Homens. E parece-me tudo ser ainda mais belo do que se uma mão divina fosse responsável pelo Universo ("a mão que moldaria nas colinas", do Sérgio Godinho).
A sua interpretação do poema, que julgo portante diferente da minha, levou-o a uma incursão num terreno bem mais pantanoso para mim: o do Sentido da Vida. A sua bela frase ("Como se não bastasse ser lançados na planície, ainda nos foi dada a consciência da situação em que nos encontramos e daqui poder lançar o olhar em todas as direcções") introduz bem a questão. Quem não se questiona, uma vez na vida? E quando diz... "Não há um desígnio ou projecto que nos tenha sido dado para realizar. E se há, não temos notícia dele.", não podia concordar mais consigo. Mas é um vazio perigoso, reconheço. Sou um mau candidato a estar naquelas linhas de Apoio à Vida... se me aparece um suicida, não posso honestamente dizer-lhe mais do que... "A sério, vais dar um tiro na cabeça?... não é o meu estilo, eu sou mais daqueles tipos que vivem sem saber porquê, por vício. Um vício dos diabos. Tu não? Ok, olha, são feitios, não é? foi um prazer conhecer-te...". Queria poder dizer algo melhor ao meu filho: "Filho, vivemos para isto:
Por fim, não posso deixar a sua última pergunta sem uma resposta clara.
P: "Achas mesmo, Luis, que eu estou a tentar «iludir», «entreter», «impedir» a fatalidade? Ou só a contorná-la com razoabilidade?"
R: A um certo nível somos livres, claro. Como as bolas numa tômbola. Sabe-se lá onde vão parar? E as ondas do mar? Dão um trabalhão a simular, usando Computação Gráfica. O movimento é caótico, quem o poderia prever?... Bem, a resposta que tenho para si não é simpática: acho que ainda não se conformou com o facto de ser uma marioneta do Universo (Mário-neta?! O meu subconsciente devia ser internado!). Mas não sei se tem alternativa, eh eh. E eu não posso dizer-lhe outra coisa senão isto, por respeito à verdade. A sua saída é bastante razoável, mas só funciona, parece-me, na Realidade Convencional. O pior é conciliar a vida na Relidade Convencional com a percepção da Realidade Absoluta. E quase ninguém vive a Realidade Absoluta, só aqueles aos quais a maioria chama "alienados".
É tarde, e amanhã trabalho. Boa noite.
13 comentários:
Meu caro Luis, se alguma vez me senti «Mário-neta» do Universo, já posso dizer-te que não me sinto mais. Tomei consciência, isso sim, de que sou «Mário-Nesta-(REALIDADE).
Seguindo o meu pensamento de que não existe um desígnio a pesar-me sobre a cabeça e a pre-determinar os meus passos, também não descortino um Princípio Criador ou Gerador perante o qual eu tenha de prestar contas das minhas decisões. Não tenho um modelo para me desenhar em conformidade e, caso algum exista, não tenho notícias dele (outra vez?!).
Sem a desculpa de ter sido previamente «criado para» por uma entidade ultra metáfísica, absolutamente-absoluta (como dizem os crentes e tu aplaudes com as duas mãos, com essa tua ideia, não explicitada, da «absoluta fatalidade») descubro-me na realíssima situação de fatalmente «livre para»…me construir, digamos.
A nossa liberdade não se reporta ao absoluto dos crentes - Deus -nem ao absoluto Lógico, dos materialista como tu ou Sartre. Porque tais absolutos não passam de conceitos. E se estes, os conceitos, são maravilhas para elaborar raciocínios e compreender este Universo lindo que somos, servem de muito pouco foram do campo das matemáticas. Não restam dúvidas de que 2+2=4. ABSOLUTAMENTE. Como duas quantidades iguais a uma terceira são iguais entre si ABSOLUTAMENTE. E o método da triangulação levou os cientistas a fabulosas descobertas das leis da física. Não sei do que estão à espera os nossos intelectuais para interiorizarem que toda esta engenharia racional esbarrou com um osso muito duro de roer: a REALIDADE. Falha, clamorosamente, o método dedutivo, perante o inesperado NÃO-ABSOLUTO que se vislumbra na mecânica quantica. Os físicos quânticos vão-se contentando com «probabilidades» e rezam, compenetrados e ajoelhados no chão da humildade, ao «princípio da incerteza».
E se até na física os absolutos vão por água abaixo, que dizer no “terreno pantanoso” do «sentido da vida»: donde viemos, quem somos, para onde vamos.
Como se pode falar em absoluto determinismo e em fatalismo nas decisões a quem faz tão honestas e sábias perguntas?
Sem te dares conta, meu caro Luis, cais no erro de Descartes: deduzes a tua existência do teu pensamento. É o que se chama pôr o carro à frente dos bois. Primeiro penso e depois sou um calhau. Seria, como diz a NEW AGE: o meu espirito faz o calhau que sou. Por mais paradoxal que ainda nos pareça, eu afirmo o contrário: de calhaus infinitamente pequenos, e por enquanto inacessíveis a medições, se fez o «Mário-Nesta-Realidade».
Se bem entendi, é exactamente isso que pensas: de calhau-para-homem.
Mas com filosofias de absolutos fatalistas, ou outros, nem às bordas do HOMEM chegas.
E enquanto discutes aí com o teu amigo Tiago a «absoluta fatalidade», dava uma sugestão para avançarem mais e mais em tão douta filosofia dos absolutos: vejam lá se descobrem, quantos anjos cabem na cabeça de um alfinete. Bons a matemática como são, hão-de chegar a uma resposta «absolutamente» certa. Considerando que um anjo mede cerca de uma bilionésima...e uma cabeça de alfinete mede meio milímetro...«é só fazer as contas»…
Vê lá se arranjas coisas mais interessantes do que estas para dizer aos teus filhos., que eu já não tenho emenda e estraguei o Tiago mais os manos, como podes constatar.
(I)
Ah ah! Não, não queria aqui ignorar o advento anti-determinista da Física Quântica. Eu tuve o cuidade de dizer que *OU* tudo está pré-determinado pelo mecanicismo infalível que agradaria a Newton (que as maçãs lhe caiam sempre com força na cabeça), e aí penso ser unânime que não há liberdade nenhuma, *OU* então existe a tal lotaria sub-atómica, que deve ser, pelos vistos, o grande garante da sua liberdade. Mas que raio de liberdade, Mário! Que liberdade ganho eu de somar à minha maquinaria determinista uma lotaria que eu não controlo?! Isso é uma espécie de caracoroísmo (filosofia de vida adoptada pelo Pato Donald num livro de boa memória): tenho de decidir, lanço uma moeda ao ar. "Caras! Vou para a esquerda! Sou livre!". Que léria de liberdade é esta?! Os meus neurónios, ou calculam tudo para além do meu controle, ou andam a jogar aos dados com o meu pensamento (como não faz o Deus de Einstein), e de uma forma ou de outra, o resultado é a minha pretensa liberdade. Não acredito nessa liberdade.
Então acredito em quê?
Agora é que vai malhar em mim a sério... comecemos pela parte mais ligeira...
Pois, contento-me em ser uma maquineta (não uma marioneta - idealmente, uma luizeta, mas isso não existe). Uma maquineta! Faço o que tenho a fazer, de acordo com a minha - vá lá - "programação". Tenho um comportamente específico, lá isso tenho. Complexo, quanto baste. Mas bem determinado. Talvez com umas lotariazitas, concedo-lhe: é provável... de resto, sinto-me feliz com essa ideia: que mal tem, se o meu comportamento é muito previsível? Isso só revela coerência. Pronto, é só: um "upgrade" de um calhau. Nada mau, há pior. E faço "honestas e sábias perguntas"? Porreiro! "A mathematician is a machine for converting coffee into theorems." (Paul Erdös) A isto chegou a evolução da matéria. Da "minha" rica matéria. Da minha absoluta e fatal matéria - "fatal", não absolutamente: a-ha!, mas fatal ao MEU nível de Realidade Relativa, na estrita medida em que, no limite, nada posso fazer contra aquilo que é 1) a minha maquinaria decisiória + (friso o MAIS) 2) a tal lotariazeca. Não há nenhum "eu" a flutuar ao lado do meu corpo, para me dar a liberdade de mim próprio. E se a minha carta de alforria é ter um anão quântico que me dá ordens, essa liberdade é uma treta, insisto. Portanto, não sou livre. Azar. Há que viver com isso (*terei* de o fazer). Quem não conseguir, bala na cabeça. Haverá casos. Em média, a nossa maquinaria é suficientemente caprichosa para nos preservar dessas atitudes drásticas. Sinto-me com sorte.
(II)
Pronto, agora é que me vou enterrar completamente:
É que esta Realidade Relativa de que falei é, melhor dizendo, uma Realidade Convencionada. Por muitas razões, em particular por razões evolutivas, tornámo-nos máquinas vivas, de sobrevivência, até de comportamento social. Temos regras muito sofisticadas. Temos sítios para os talheres à mesa. Gramáticas tramadas de aprender. Teorias do caneco (algumas bem cabeludas, ao que parece).
E somos um bocado egocêntricos. Já o disse antes, lembrar-se-á...:
"Um quadro não existe. Da tela e das tintas dispostas de uma maneira particular, dos meus componentes visuais e intelectuais, e da interacção entre todos, resulta a apreciação artistíca. Essa apreciação é dependente de tudo o resto e não tem existência intrínseca. O quadro é dependente de tudo o resto e não tem existência intrínseca. Eu sou dependente de tudo o resto e não tenho existência intrínseca. Eu existo na sua cabeça, Mário, mas para as bactérias que um dia hão-de comer esta ideia que o Mário faz de mim, eu não sou nada. Vai haver é uma série de almoçaradas... e estou certo que nenhuma das bactérias se há-de lembrar de dizer: "Sabem como é que devíamos chamar a estas jantaradas que começaram há sete anos [se a terra for boa] e acabaram hoje? 'Luís' era um nome porreiro, pá.". Para o coveiro serei o recheio do caixão. Para alguns uma lembrança. Para outros serei coisas diferentes."
Assim, há uma Realidade Convencionada para mim, outra para si (parecida), outra para as bactérias (diferente!), outra para um cão, enfim, cada ser sensível tem uma percepção da realidade. E a nossa (humana) é que é a certa?! Porquê? Acaso somos o Povo Escolhido? Ora, as minhas células não estão vivas? Quantas vidas sou eu? Qual é o critério? Ter perninhas? Um formigueiro é um ser vivo, ou o ser vivo é cada formiga? As formigas (na sua maioria) não se reproduzem, melhor, não têm sequer capacidade para isso! Então afinal esta realidade tal como a vemos, aqui à minha esquerda uma televisão, um teclado na ponta dos dedos, pijaminha quentinho, a minha mulher ali ao lado... isto afinal existe ou não?
(III)
Tudo existe, claro. Tudo. "Tudo". Mas não cada coisa. Na Realidade Absoluta, não há padrões, porque não há um Observador Absoluto. Tudo é, sem fronteiras. A minha liberdade não é, nem deixa de ser, pois não há "minha", nem "tua", nem "eu" nem "tu" (talvez aí seja realmente livre!). Não há *ninguém*. Só há "alguém" no pensamento. Todos somos tudo, ninguém nasce e ninguém morre (a imortalidade é um brinde!). Só há a matéria, o pensamento é uma característica da matéria, os múltiplos pensamentos serão caracterítica, comportamento da matéria. E aí, já é o Mário que bate palmas com as duas mãos, acreditando (até agora, mas espero demovê-lo!) que existem "coisas" e "pessoas" e "formas": nada disto existe na matéria, na REALIDADE, só na cabeça dos observadores. Na cabeça preconceituosa de cada variedade específica de observador, condicionada para ver o Mundo de uma maneira, de uma óptica, de uma perspectiva unilateral, evolutivamente proveitosa, geneticamente competitiva, etc. etc. Como compete a uma máquina afinada.
Alienação? Claro, total alienação da Realidade Convencional. Perspectiva inútil? Talvez. É relativo. Talvez seja a maneira de, agora eu, «iludir», «entreter» e «impedir» a fatalidade. Ou só contorná-la com razoabilidade. Mas não o faço com o propósito de obter vantagens. Não foi um meio, um argumento, calhou ser uma conclusão. Mas avaliando os eventuais proveitos, afinal, perceber que a vida é apenas um jogo, treinado ao longo de milhões de anos, pode trazer alguma lucidez ao próprio jogo... Quanto à alienação, alienação é jogar sem saber que se está a jogar. E quando o jogo é demasiado absorvente, torna-se difícil vê-lo como um jogo. Mata-se pelo jogo, desespera-se pelo jogo. Na esperança de ver a Realidade Absoluta, alguns deixam a casa para consegui-lo. Outros sentam-se umas horas a meditar no chão, para não deixar que o jogo tome inteiramente conta da sua visão do mundo. Alguns poucos, felizardos, olham para as coisas das Duas Maneiras ao mesmo tempo.
Topou com um bicho esquisito: um ateu budista.
P.S.: Tive a oportunidade, desde que deixei a Faculdade, de acompanhar o resultado do seu trabalho. O Tiago não tem pachorra para me aturar, no que noto um claro progresso face a si próprio, Mário. O rapaz tornou-se um pragmático (que horror), e corre o sério risco de ver o mundo com objectividade. Pode até mesmo sofrer de lucidez, e isso seria uma condição irrecuperável. Os meus "tratamentos" têm-no mantido à tona, mas é à justa. Vamos ver como progride.
Despejaste o tratado, todo, de uma vez! Ainda bem, que assim fiquei com uma visão de conjunto.
Estava a ler-te e não pude deixar de ver-me a recordar muito da história do pensamento. Desde a sistematização do conhecimento, com os antigos pensadores da Jónia e da Grécia, as perguntas, ainda sem resposta, são acerca do enigma que nos nos envolve e somos.
Não disse, nem podia ter dito, que és filho dependente do indeterminismo quântico, como se o fosses de uma absoluta lotaria. O principio da incerteza, diante do qual se ajoelham os físicos, parece ser, sobretudo, a nova expressão do velhinho desabafo: sei que nada sei. A física e a metafísica reconhecem que há bem mais para conhecer do aquilo que já conhecemos. Teimosamente, a Realidade não se deixa capturar e agora é a física que reconhece, claramente, que ainda está a dar os primeiros passos para conseguir "medições"de algo que não se deixa, literalmente, equacionar.
Não sei como podemos sentir-nos constrangidos diante de uma Realidade tão vasta e tão aberta diante de nós. Só vejo uma razão para tal estado de alma: pensar-se, muito erradamente, que não somos parte integrante dessa Realidade. Então sim, podemos dizer que estamos "situados entre o nascimento e a morte", que emergimos do nada há quarenta ou sessenta anos e ao nada regressaremos quando dermos o peido-mestre e ficarmos entregues à bicharada….
É perfeita falácia pensar que vimos do nada, porque temos pai e mãe, em forma e conteúdo, e não reduzidos às suas estruturas basilares atomicas, subatómicas ou o que ainda mais interior e ínfimo seja da matéria. Ai o «reducionismo»!...
Os «reducionistas» pensam que quanto mais decompuserem as formas emergentes da matéria nos seus elementos e leis organizacionais básicos, mais perto ficam de descobrir e compreender o sentido das coisas. O processo para encontrar o sentido das coisas talvez seja exactamente ao contrário. Decompor a «lágrima de preta» e verificar que é "quase tudo água e cloreto de sódio", poderá ensinar-nos a reconstruir uma lágrima, mas o significado daquela lágrima inteira e chorada só assume toda a sua realidade quando escorre pela face da mulher negra.
Quanto mais decompusermos, mais nos afastamos do significado da realidade que está diante de nós: a lágrima colhida dos olhos de uma preta que chora.
Esta a perspectiva é brilhantemente exposta pelo premio Nobel da física 1998, Robert Laughlin, na sua obra recente e única, em «Um Universo Diferente» -reinventar a física na era da emergência. Segundo ele lidamos a cada instante com coisas repletas de significado, apesar de compreendermos ainda muito pouco como elas emergiram. «O que a física tem a dizer-nos é que o "todo é maior que a soma das suas partes", não é apenas um conceito, mas também um fenómeno físico».«A natureza está cheia de coisas altamente fiáveis que são como versões primitivas de quadros impressionistas. Um campo florido pintado por Renoir ou Monet parece-nos interessante, já que forma um todo perfeito, mas as pinceladas toscas que formam a imagem são imperfeitas e com formas aleatórias. Essas imperfeições das pinceladas individuais indicam-nos que a essência da pintura é a sua organização».
Pensar-nos situados e entalados entre o nascimento e a morte é como olhar aquelas pinceladas, isoladas do conjunto.
Não podemos, no mínimo, esquecer os nossos pais. E quanto ao banquete das bactérias, elas estão a comer o mesmíssimo Luis a quem fizeram viver por muitos e belos anos.
Quem sabe, Luis, e agora estou mesmo a fantasiar, esse eu que parece voar à tua volta e a dar-lhe a impressão que tanto está no palco a representar as cenas da vida como na plateia a saborear e avaliar o próprio desempenho, se agarra a uma qualquer estrutura base «residual» da sua física realidade e nelas subsiste?
Era bom, não era? Manter a nossa identidade, resistindo ao banquete destes bichinhos que se organizaram para nos fazer viver e acabam por nos comer até ao tutano!
Os crentes professos de todas as religiões dão esse salto no escuro. E ficam todos consolados. E não sou eu que os vou desmoralizar. Mas que não me chateiem, nem me batam, nem me matem por não ir no salto com eles. Aceito, porém, que me excomunguem, como, aliás, já me fizeram. Porque, de facto, estou noutra.
O teu texto é demasiado saboroso e denso para me ficar por este primeiro comentário.
Agora vou passear com a minha Maria.
I Parte
Meu caro Luis, tu vais decompondo o conceito de liberdade até dares de caras com a uma irrefutável fatalidade, tão lindamente cantada por Gedeão. E quanto mais aprofundas em busca de um absoluto de liberdade mais te aproximas de um absoluto de fatalidade. E em todo esse percurso vais-te distanciando daquilo que é a tua Realidade. É como se em vez de um Luis de carne e osso, olhássemos um abstracto conceito de homem, de liberdade, de fatalidade. A verdade, porém, é que tu és tudo isso ao mesmo tempo. Carne e osso, liberdade, fatalidade, humanidade. O ser resultante, o Luis Ferreira com quem estou a conversar, transcende «as «partes» concebidas ou simplesmente constatadas. Paradoxal, concordo: rigidez dos ossos amassada com a subtileza imaterial da liberdade e fatalidade. Tudo entrelaçado. Meu deus!
E como se ainda fosse pouco, adensa-se o mistério da nossa existência: somos a realidade de onde procedemos mas já estamos para além dela, com perspectivas de ser ainda outra coisa, enquanto crescemos.
Aquilo a que chamamos liberdade é muito mais que um estado de alma ou um pensamento. Não vale algemares-te a um tronco e depois pores-te a gritar: aqui-del-rei que estou preso! É inegável que estás preso e bem algemado. Fatalmente.
Nós nascemos fatalmente algemados, na absoluta fatalidade da "inconsciência", que é nem nos podermos dar conta disso. Evoluimos, lentamente, primeiro como espécie e depois como indivíduo, no espaço e no tempo que nos calha, entre o nascimento e o banquete das bactérias. Na espécie e no individuo está potenciada a consciência da nossa condição e a capacidade de decidir, fatalmente, sobre o «bem» ou sobre o «mal».
Serve de alguma coisa interrogar-nos sobre a liberdade ou falta dela? Não será agitar, inconsequentemente, um mero estado de alma? Porquê dar-lhe importância?
Porque alguém nos ensinou que temos de seguir à risca o caminho que um Mentor nos traçou? E esse "mentor" não poderá ser uma «maquinaria determinista»?
Podemos optar por ficar enrodilhados nestas e noutras muitas perguntas ou prosseguir caminho, evoluindo na consciência do que somos, sabendo, de antemão, que amanhã seremos, fatalmente, o que decidirmos hoje. E sabendo, também, que amanhã serei o mesmo e outro já diferente. No mínimo, mais velho um dia.
O problema da escolha e do livre arbítrio coloca-se quando se acredita que temos de obedecer a alguém ou alguma coisa, seguindo o que nos foi pré-determinado. A realidade nua e crua é que ninguém sabe se fomos ou não determinados por alguém ou «alguma coisa» e muito menos aonde nos conduz esse «determinismo». É como se tivéssemos apanhado um comboio em andamento que não sabemos de onde procede nem qual o seu destino. Mas que anda e bem e há muito tempo, lá isso sabemos. E entramos no jogo, com uma certa preocupação de não fazer descarrilar o comboio, tentando perceber os mecanismos do seu funcionamento.
E não chega para viver a aventura da vida?
A nossa consciência e capacidade de decisão evoluiu até um ponto tal, que para além de poder decidir sobre o «bem» ou sobre o «mal» também podemos decidir nunca mais decidir, atirando-nos pela janela do comboio, em pleno andamento.
É quando se dá um tiro nos cornos.
A fatalidade é uma ideia irrefutável. Mas como não serve para nada, passamos adiante. Afinal, até António Gedeão percebeu que é o “sonho” e não a “fatalidade” que comanda a vida.
Quando o rabo já não servia para nada, foi-se reduzindo até a um ridículo e invisível cóccix.
E não me digas, Luís, que não deparamos com paisagens maravilhosas durante a curta ou longa viagem no comboio da vida. É só olhar para os teus filhos…
.
Não é que a sua opinião seja mais importante que a tua ou a minha, até porque não é área da sua especialidade, mas sempre dá gosto ouvir uma pessoa muuuuito inteligente, Albert Einstein. E tem a ver com o assunto de que temos estado a falar: a liberdade.
Apensa duas citações, retiradas do seu livro =Como Vejo A Ciencia A Religião E O Mundo=:
«Ninguém, por certo, negará que a existencia de um Deus pessoal, justo, bom e omnipotente é de molde a propiciar consolo, auxilio e orientação ao ser humano; de igual modo, é uma ideia que pela sua simplicidade se torna acessivel até às mentes menos desenvolvidas. Mas, por outro lado, esta ideia comporta em si uma decisiva fraqueza, dolorosamente sentida desde os começos da história. É que, se este ser é omnipotente, então todos os acontecimentos, incluindo todas as acções e pensamentos, todos os sentimentos e aspirações do ser humano são também obra Sua; como é possivel, nesse caso,responsabilizar os homens pelos seus actos e pensameentos, diante de um Ser todo-poderoso como este? Ao recompensar ou punir os homens, Ele está em certa medida a julgar-se a Si mesmo. E como pode isto conciliar-se com a justiça e com a bondade que lhe são atribuidas?»
Está bom de ver que se em vez do Deus-Pessoal pensarmos num qualquer Ser-Supremo-Impessoal identificado com o proprio Universo, como no budismo, por exemplo, o nosso «drama» de fatal dependencia não só não desaparece, como traz a agravante de nos fazer sentir mais sozinhos que um cachorro abandonado. Vou chamar a esta agravante "solidão cósmica", pois já percebi que te sentiste humilhado comparado a um canídeo.
E que aconselha, então, Einstein, aos encarregados de educação?
«No seu combate pelo bem ético, devem ter a coragem de abdicar da doutrina de um Deus pessoal, isto é, renunciar a essa fonte de medo e de esperança que, no passado, acabou por depor um tão vasto poder nas mãos dos padres. Nesse seu empenho, os professores terão de servir-se de forças capazes de cultivar na humanidade o Bem, a Verdade e a Beleza por si mesmas».
Onde iriam os educadores abastecer-se das tais «forças capazes»? Ao conhecimento científico.Por isso ele acaba o capítulo desta forma: «Neste sentido, acredito que o padre, se deseja fazer justiça à sua elevada missão educativa, deve converter-se num professor».
Converter a ciência numa religião?
Lembras-te Luis, daquele e mail em que te confessavas «ateu budista» e eu te respondi, à letra, que eu era ateu cristão? Será que eu recuso o Deus pessoal dos cristãos e tu recusas o Ser-Universo, impessoal dos budistas? Ou quisemos dizer outra coisa?
Diz-me Luis, como é que sabes que «na realidade absoluta não há padrões»? Já lá chegaste por dedução ou intuição? Revelação divina não, que és ateu.
É verdade que afirmo e bato palmas que há «coisas», «pessoas» e «formas». Algo mais básico se organizou em partículas, átomos e moléculas para que as nossas pessoas, coisas e formas existissem como as percepcionamos. E dizes que esta percepção é pura subjectividade? Se uma cobra surucucu, privada de visão, só consegue detectar o calor da presa, isso não quer dizer que além do calor não exista uma complexidade fabulosa e saborosa de moléculas organizadas na presa apetecida. Até porque não é propriamente o calor que ela procura para se alimentar, mas o resto...E a surucucu não sonha nem produz conceitos. Pelo menos como nós.
Se colocares uns óculos de sol, as cores da paisagem não mudam, apesar da tua observação já ser diferente.
Tudo isto para dizer que o sujeito observador não se confunde com o objecto observado, apesar de um e outro fazerem parte da mesma REALIDADE. Eu sei. Luis, que é um perfeito enigma como nós evoluímos para este "distanciamento" que nos permitiu conjugar o verbo SER: eu sou, tu és, ele é...Aquilo é, o universo é...
É um exercício que a surucucu não faz, nem tu e eu fizemos enquanto pouco mais éramos que uma «potencialidade» de homem. Demorou tempo até nos apercebermos desta assombrosa realidade humana. Se o "embrião"não viesse em boas condições, talvez nunca viéssemos a fazer perguntas e constatações, nem a conjugar o verbo SER. E mesmo assim, muitos humanos, potencialmente capazes desta singularidade, podem limitar-se a existir vegetando, como dizia aquele autor que citaste, ou «morrer» muito antes de deixar de respirar.
E daqui se passa a outra constatação: não nascemos livres, mas com a capacidade de o ser e desenvolver mais e mais essa potencialidade. Nesta perspectiva, a liberdade passa a ser uma conquista e uma tarefa a realizar Não é um "estado de alma» e muito menos um atributo de uma qualquer "entidade imaterial"que habitaria o invólucro "material" que é o corpo.
Ficamos na situação um tanto incrível: nascemos sem liberdade ou com liberdade apenas potenciada e teremos tanta, quanto aquela por que lutarmos.
Ou seja, teremos de procurar a liberdade seguindo a «seta do tempo»: no futuro.
Na discussão sobre o fatalismo e sobre o livre arbítrio parece que fixamos sempre o nosso pensamento no passado e a reclamar com os nossos progenitores. Acho que é tempo de dizermos aos nossos filhos (já agora dá o recado ao Tiago, porque ainda não lhe tinha dito esta...) que procurem a liberdade no futuro, porque ela é uma conquista de cada um e da espécie humana como tal. Não depende nem de Deus nem do Diabo, o que é capaz de não servir de grande consolação, a quem se habituou a depender do «papá» e da «mamã», até para escolher o tamanho da mini-saia…
Vencer todo o género de limitações a este impulso de liberdade é uma tarefa só para homens.
Vou parar por aqui, porque a pergunta que vou deixar no ar, há-de levar-nos ao coração do maior anseio do homem.
Liberdade para quê?
Mas antes de ir atrás da resposta a esta pergunta inquietante e decisiva na vida de cada um e da própria humanidade, nem Gedeão, nem tu estão sozinhos na verificação da ausência do livre-arbítrio. Friedrich Nietzsche (porra, que nome difícil de escrever!) discorre assim: «Contemplando uma cascata, acreditamos ver inúmeras ondulações, serpenteares, quebras de ondas, liberdade da vontade e capricho; mas tudo é necessidade, cada movimento pode ser calculado matematicamente. O mesmo acontece com as acções humanas; poder-se-ia calcular antecipadamente cada acção, caso se fosse omnisciente e, da mesma maneira, cada progresso do conhecimento, cada erro, cada maldade. O homem, agindo ele próprio, tem a ilusão, é verdade, do livre-arbítrio; se por um instante a roda do mundo parasse e houvesse uma inteligência calculadora omnisciente para aproveitar essa pausa, ela poderia continuar a calcular o futuro de cada ser até aos tempos mais distantes e marcar cada rasto por onde essa roda a partir de então passaria. A iluminação sobre si mesmo do homem actuante, a convicção do seu livre-arbítrio, pertence igualmente a esse mecanismo, que é objecto de cálculo».
Newton não diria melhor acerca do movimento dos astros. Só que nós não podemos ser comparados à lua ou ao sol. Estamos noutra realidade, verdadeira singularidade, até mais ver, que é este autêntico «pintelho da galáxia», o estonteante Planeta Azul.
É fácil chegar à conclusão que se pretende, quando a premissa pode ser tão desastradamente vaga quanto isto: «caso se fosse omnisciente». Assim não vale, Friedrich! Em tal filosofia o nosso povo é mais imaginativo: "se a minha avó fosse viva"...
Há uma verdade científica, cada vez mais afirmada, que nos diz que o «acaso» existe mesmo.
Ora o acaso está nas antípodas do determinismo de Newton! E também contraria flagrantemente a ideia dos «criacionistas». Não se conforma, tão pouco, com a ideia de um "projecto" na "criação" do Universo, pelo menos como nós o pensamos ou simplesmente imaginamos. A existência do «acaso» baralha tudo! E, a meu ver, poderá ser o único ponto de partida para se considerar a existência do famigerado livre-arbitrio.
Já estou a ver o Luis a bufar por todos os lados e o Tiago a dizer-lhe tem calma que o meu pai já te explica essa trapalhada...Para acalmar, o Luis propõe ao Tiago que hoje vão almoçar ao Rossio, num bom restaurante, nas calmas, a pé. Assim foi. Ao passar pelo Martin Moniz, por baixo de uma varanda do terceiro andar de um prédio, quando velha senhora que tentava reparar o estendal, deixa cair o martelo que, por um daqueles incríveis acasos, cai na cabeça do Luis (ia lá eu partir a cabeça do meu Tiago...), deixa-o inconsciente nos braços do aflitíssimo amigo, que chama o INEM. Apesar da aflição, o Tiago ainda consegue ver lá em cima a velha e aflita senhora com as mãos na cabeça, desesperada com o sucedido...
Perfeito acaso.
Diria aqui o nosso filósofo alemão que «caso o Luis fosse omnisciente...». Pois é, «caso fosse»… não teria ido a pé, desviar-se-ia no preciso momento em que deu o tremelique na mão à velhota e o martelo se soltou etc.etc.
Não se vislumbra a mínima relação de causa-efeito entre a decisão do Luís em meter-se a pé a caminho do restaurante e a decisão da senhora de arranjar naquele dia e naquela hora o bendito estendal, a mão tremer-lhe e deixar cair o martelo. Sendo crentes, ainda poderíamos ver no sucedido o remotíssimo e longo dedo de Deus ou do Diabo.
Portanto, aquele acontecimento é absolutamente obra do «acaso», não se podendo recorrer nem à intencionalidade, nem a qualquer determinismo que se substitua ao acto voluntário. As leis de Newton explicam porque é que o martelo cai e parte a cabeça do Luís e podem determinar que, considerando as decisões do Luís e da velha, naquele preciso instante o facto podia ter acontecido. Mas seria sempre a descrição de um acontecimento «à posteriori», em que todas as variáveis estão perfeitamente determinadas. O acontecimento pode ser recriado em laboratório com uma precisão infalível. E é o que ciência faz. Não cria a realidade, mas compreende-a, descreve-a e recria-a.
Mas o «acaso» escapa-lhe.
Outra constatação que podemos fazer, nesta história do martelo que parte a cabeça do Luís, é que cada acontecimento não é efeito de uma causa simples mas de um encadeamento infindável de causas e efeitos. O Luís vai a pé e muda de restaurante para espairecer a cabeça, depois de ler as barbaridades que o Mário lhe mandou para o site. E o Tiago é a causa anterior porque pôs o Luís em contacto com o seu pai…E a velhota comprou o martelo para pregar pregos e não para partir cabeças e porque o dono da ferragem lhe disse que era bom ter sempre um em casa…
Poderíamos recuar até ao Big Bang e ainda fazer a pergunta mais tola ou mais sábia de todas: onde está a causa para o efeito do Big Bang.
Se dissermos que o Big Bang é o exemplo primeiro do «ACASO», somos capazes de começar a aproximar-nos da verdade sobre o Universo.
A física de Newton não serve para explicar as leis da relatividade e as leis da relatividade são insuficientes para explicar a mecânica quântica. As três juntas não explicam o ACASO.: porque é que naquele dia e naquele instante e naquele lugar, entre milhões de «luíses», teria de calhar a má-sorte ao amigo do Tiago!
E chegámos a uma conclusão surpreendente: se existe o ACASO não pode existir o perfeito «desígnio divino», nem a perfeita maquinaria determinista de que fala Nietzsche. E outra conclusão ainda mais surpreendente: se existe ACASO, o livre-arbírio e a liberdade são possíveis, não como realidades de facto que se podem apanhar aqui ou ali, mas potenciadas neste ser inacreditável que emergiu no maravilhoso Planeta Azul: o HOMEM-CONSCIENTE.
Num grau de consciência elevado podemos dizer que a liberdade é total porque ninguém nos projectou e nada nos determina.
Até podemos atirar-nos pela janela fora deste comboio da vida onde seguimos embarcados.
É fantástico como uma martelada na cabeça nos pode fazer perceber que o ACASO nos remete para o coração do enigma da vida. Mas esse Mistério da Vida é muito mais que a casualidade de uma cabeça partida.
E voltamos ao mesmo: liberdade para quê?
PS
Se acabo de escrever um chorrilho de disparates, nem me dei conta disso. Nunca me tinha interessado muito por este assunto do livre-arbítrio.
Não me batas muito, Luís, e perdoa a cabeça partida.
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