terça-feira, janeiro 05, 2010

Poema do livre arbítrio

'Há uma fatalidade intrínseca, insofismável
inerente a todas as coisas e nelas incrustrada.
Uma fatalidade que não se pode ludibriar,
nem peitar, nem desvirtuar,
nem entreter, nem comover,
nem iludir, nem impedir,
uma fatalidade fatalmente fatal,
uma fatalidade que só poderia deixar de o ser
para ser fatalidade de outra maneira qualquer,
igualmente fatal.

Eu sei que posso escolher entre o bem e o mal.
Eu sei que posso fatalmente escolher entre o bem e o mal.

E já sei que escolho o bem entre o mal e o bem.
Já sei que escolho fatalmente o bem.
Porque escolher o bem é escolher fatalmente o bem,
como escolher o mal é escolher fatalmente o mal.
O meu lívre arbítrio
conduz-me fatalmente a uma escolha fatal.'


António GEDEÃO
Novos Poemas Póstumos, 1990


O homem disse tudo. Que vou eu dizer agora? Invejo-lhe a autoria do poema.

3 comentários:

Mario Neiva disse...

A.Gedeão escreveu o poema no auge da "moda" da filosofia existencialista. Ora os existencialistas deixaram-se fascinar pela leveza e fluidez das coisas, a que chamaram "devir", para no final definirem o homem (não tanto a pessoa) como o somatório dos seus actos: a nossa «essência» emerge no preciso momento em que morremos. A nossa identidade só é coincidente com o nosso nome, quando ambos estão gravados na lápide da sepultura. E «já não somos».
A “lógica” desta filosofia é que se não tivemos um princípio também não temos um fim e na sepultura jaz um NADA-DE-SER.
Dizia-se, na altura, que «estamos situados entre o nascimento e a morte». E ninguém nos consultou para nascer. No fundo, a fatalidade das fatalidades é mesmo existir. E mesmo que existíssemos mil anos ou até fossemos imortais, isso só multiplicaria o nosso «desgosto» até tornar a vida insuportável, de tão longa, como se diz no romance «O Imortal» de Simone de Beauvoire, existencialista como o seu companheiro Sartre.
Acontece que, cada um de nós está coisa nenhuma entalado entre o nascimento e a morte! A ciência encarregou-se de obrigar os filósofos embrulhados em conceitos, a descer à terra e encher de “carne” os conceitos da gente (António Damásio a corrigir o «Erro de Descartes») A ciência empurrou-nos para fora daquele entalanço em que tais filósofias nos meteram durante séculos a fio, abrindo horizontes “materiais” que fizeram implodir os tradicionais conceitos de «matéria» e «espírito».
Os pensadores ainda andam atarantados, sem saber como lidar com a vertigem das descobertas cientificas. E já nos demos conta que os cientistas invadem, e bem, os terrenos da filosofia, no sentido de que fazem exactamente as mesmas perguntas que os filósofos verdadeiros sempre fizeram (a maior parte só finge que pergunta, porque já sabem tudo). Basta retomar a ideia genial de Aristóteles de que «todo o conhecimento começa nos sentidos» para perceber que cientistas e filósofos andam ao mesmo: quem somos, donde viemos, qual o nosso destino.
Não é por acaso que Aristóteles reunia em si o cientista, o filósofo e o teólogo...
Mas Aristóteles viveu num tempo em que era impensável pôr sequer a questão da existência de Deus e da Alma. A partir destes pressupostos se começava a pensar.
Assim, para Aristóteles, era este o percurso do nosso conhecimento: todo ele a começar na ponta dos dedos ou na perspicácia do olhar e depois a transformar-se em «realidade autónoma» quando chegava à nossa alma, entidade intemporal, incorruptível e com um destino que nada tinha a ver com o "burro" que a carregava, o transitório e mísero corpo.
Literalmente, as percepções dos sentidos viravam fantasmazinhos quando mergulhavam na alma. Os objectos perdiam a sua materialidade e ganhavam a subtileza do conceito e estes, habilmente manobrados pela razão, davam-nos o verdadeiro conhecimento. Um saltinho apenas, da Física à Metafísica, como quem diz, do experimentar ao pensar. E assim ficava estabelecido até aos nossos dias que se os olhos do corpo nos enganam e os da alma não o fazem. Mas tudo (do conhecimento) começava nos “olhos do corpo”.
Mas a ciência tem vindo a pregar partidas a Aristóteles, sobretudo nos últimos duzentos anos! Disseram-nos os físicos que o Universo não se deixa apalpar ou ver ou medir, ou ouvir ou saborear, tão imenso e denso se vai revelando. De repente percebemos todos que o «Real» não só não é aquilo que pensávamos, como estamos mais cientes que nunca, de que dele só conhecemos uma ínfima parcela. É como se o «verdadeiro conhecimento» que escapava aos sentidos de Aristóteles, agora também se esquiva à nossa razão.
E também chegou a vez de os próprios físicos ficarem atordoados e nós a ouvi-los murmurar, quais “Sócrates” do século XXI: sei que nada sei! E lá os vemos, atónitos, a descobrir enxames de galáxias, a revolver as entranhas da terra ou a "partir pedra" no acelerador de partículas.

Mario Neiva disse...

Parte II
Quem se sentir fatalmente entalado numa realidade tão vasta, comece a cogitar se não estará antes perdido na imensidão do real e ainda não se deu conta.
E aí o problema já não será tanto um problema «existencial» ou «essencial» ou de «conhecimento», mas de solidão...
A vida e tudo o que nela somos já não se impõe a nós, encurralando-nos numa pequena ou grande prisão. É antes como se tivéssemos sido largados numa planície imensa e a perder de vista. Não se trata de um simples "sentimento interior", porque não há sentimentos interiores ou exteriores que se possam refugiar numa alma escondida algures na cápsula do corpo! É a Realidade no seu esplendor que nos lança um imenso desafio. Como se não bastasse ser lançados na planície, ainda nos foi dada a consciência da situação em que nos encontramos e daqui poder lançar o olhar em todas as direcções. Espantosamente, para qualquer lado que olhemos, não vemos outras barreiras que não sejam as que são próprias de uma humanidade em crescimento e de um conhecimento incipiente. E nem barreiras lhe chamamos mais. Chamamos-lhe desafios.
Resumindo, meu caro Luis: se há uma fatalidade a considerar, essa é a do pouco que ainda sabemos acerca de nós e do nosso universo. E nunca serão, de todo, questões do foro moral, do bem e do mal. Já foi tempo de estarmos entretidos a discutir se é bem ou mal comer carne de porco ou ir à missa ao domingo. O que nos pode atormentar, isso sim, e dói muito, é a solidão. Quem nunca, pelo menos uma vez na vida, se sentiu sozinho perante o Universo inteiro? Mesmo que rodeado de muita gente e olhando um panorama deslumbrante?
Aceito que nesse momento nos sentimos encurralados. Mas tem remédio: o amor. E eu só o posso definir como encontro de dois universos, aquilo que, na verdade, é o encontro de duas pessoas.
Por mais incrível que pareça temos, nas nossas mãos de humanos, tudo para ser felizes: o desafio da imensidão do universo e o carinho dos que amamos e nos amam.
O nosso «livre arbítrio» é bem mais do que escolher entre um hipotético bem e um hipotético mal ou decidir ou não decidir (sobre o quê?) depois de uma fantasiosa discussão entre ser ou não ser.
É antes escolher entre ficar sentado e amuado na beira do caminho ou seguir viagem a caminho das estrelas. Não há um desígnio ou projecto que nos tenha sido dado para realizar. E se há, não temos notícia dele. Contrariamente ao que nos tentam impingir os sacerdotes de todas as religiões, não existe um modelo ao qual nos devemos conformar. O desafio é precisamente criar o “modelo” com as ferramentas que temos nas mãos. Somos um ser em construção, muito mais que em evolução, porque já estamos a criar o próprio caminho que pisamos. Na evolução «passiva» sofremos transformações para nos adaptarmos. Agora criamos o “meio”para nos construirmos como seres cada vez mais humanizados, a caminho da plenitude das nossas potencialidades.
Não sabemos donde viemos, quem somos, nem para onde vamos? É verdade. Mas se quisermos uma resposta só a conseguiremos continuando a caminhada. A religião não a dá porque não a tem e os ateus e cépticos parece que não têm mais nada que fazer senão chatear-se com o que os padres pregam. Apetece-me dizer a todos eles: vão trabalhar, malandros!
E uma bicada final, só para ti: que lindo o poema da Pedra Filosofal”

Mario Neiva disse...

Achas mesmo, Luis, que eu estou a tentar «iludir», «entreter», «impedir» a fatalidade? Ou só a contorná-la com razoabilidade?