terça-feira, dezembro 01, 2009

Comentário ao artigo "Darwin e a Religião"

Comentário ao artigo "Darwin e a Religião" de Anselmo Borges (DN 28 de Novembro de 2009)


Caro Anselmo Borges,

Ao ler o seu texto senti a necessidade de proporcionar aos leitores do mesmo o devido contraponto.

O respeito pela economia do esforço leva-me de imediato a recomendar-lhe a leitura do livro de Richard Dawkins "The God Delusion" (na versão em língua inglesa, certamente, já que na versão editada em Portugal o título foi traduzido absurdamente pela expressão "A Desilusão de Deus"; outros, com mais propriedade, optaram por "Deus, Um Delírio").

No capítulo "The God Hypothesis", especificamente na secção NOMA (de "non-overlapping magisteria") e em particular na página 56 (Edição de 2006 da Bantam Press), encontraria muito sobre o que reflectir.

Assim, e procurando ser breve e objectivo, que a vida não dá tempo para mais, procurarei canibalizar o referido livro e passar as ideias essenciais, ao meu jeito (com a poupança, para já, das £20 do preço recomendado, na esperança de que as vá gastar em breve):

1) 'Deus é objecto de fé e há razões para acreditar como há razões para não acreditar'
A razão para acreditar em deus (perdoe a minúscula) é a fé, as razões para não acreditar resultam da aplicação da Razão (perdoe a maiúscula). fé é a razão para quando não há razões (sim, minúscula depois de um ponto já é má vontade).
"A fé é um mal precisamente porque não requer justificação e não admite argumentação", diz Dawkins (mas em inglês).

2) 'A ciência responde ao "como" e não ao "porquê" da realidade'
Quando se explica COMO uma causa produz um efeito, explica-se o PORQUÊ do efeito. Poderá haver alguma situação particular em que isto seja menos óbvio, ou até falso, mas não me lembro agora de nenhuma, e por isso a afirmação falha no mínimo por generalista. Entretanto, não há qualquer razão para acreditar que a religião tenha melhor resposta para o "porquê" do que a ciência. Aliás, não há qualquer razão para acreditar que a religião tenha melhor resposta para coisa alguma do que a ciência, uma vez que não tem base racional nem incorpora um processo de auto-crítica e validação, como a ciência. Porquê então a religião? Só porque não sei os próximos números do totoloto, não estou a pensar mandar a Academia de Ciências a Plutão e ir perguntar a opinião à Confraria dos Adivinhadores. Da mesma forma, às vezes é melhor chorar do que colocar uma chucha na boca. As chuchas são para os bebés, e há uma razão para isso. Encher o nosso cérebro com respostas não fundamentadas é bom para acalmar o "espírito", mas não é critério de verdade.

3) 'Assim, é tão ridículo invocar o livro do Génesis, com o seu mito da criação, lido literalmente, para negar a evolução, como invocar a ciência para provar que não há Deus'
Com efeito, provar que não há Deus (maiúsc.) recorrendo à ciência é tão ridículo como tentar apanhar um daqueles unicórnios invisíveis que habitam nas paredes da maioria das casas com um camaroeiro. Mas levar-lhes aveia diariamente não o é menos.

4) 'Aliás, há o famoso "princípio antrópico", que não demonstra Deus, mas que dá que pensar.'
Fica sem resposta, por falta de tempo e jeito. (por alguma coisa o livro custa £20!). De qualquer forma, se o mundo fosse de tal forma que não pudessemos surgir nele, então não estaríamos mesmo, e não tenho grande dificuldade em conviver com esse facto. Se estamos, estamos. Cogito ergo sum, já disseram.

5) 'O próprio Darwin viveu a questão religiosa em perplexidade'
Felizmente, Darwin, para quem estou em eterna dívida pelo seu maravilhoso contributo, não é o Messias da Ciência. A Ciência não depende dele para estar correcta ou errada, a Ciência não tem de se reduzir às suas limitações (menores que as minhas, ao que parece) nem às de ninguém. Assim, as dúvidas de um homem não servem para suportar a eterna dúvida do colectivo. Infelizmente, também a irredutível honestidade intelectual de um homem isolado não é suficientemente contagiosa:

"Contrary to the fantasies of the fundamentalists, there was no deathbed conversion, no last minute refuge taken in a comforting vision of a heaven or an afterlife. For Carl, what mattered most was what was true, not merely what would make us feel better. Even at this moment when anyone would be forgiven for turning away from the reality of our situation, Carl was unflinching. As we looked deeply into each others eyes, it was with a shared conviction that our wondrous life together was ending forever."

- Ann Druyan (esposa de Carl Sagan)


Permita-me uma última citação, antes de me despedir com os votos cordiais de um maior acesso à verdade para todos (afinal o que poderá haver de mais belo?)

"Do not believe in anything simply because you have heard it. Do not believe in anything simply because it is spoken and rumored by many. Do not believe in anything simply because it is found written in your religious books. Do not believe in anything merely on the authority of your teachers and elders. Do not believe in traditions because they have been handed down for many generations. But after observation and analysis, when you find that anything agrees with reason and is conducive to the good and benefit of one and all, then accept it and live up to it."

- Richard Dawkins... ah, não, afinal foi Buda (mas não em inglês).