segunda-feira, janeiro 18, 2010

Em jeito de resposta a um comentário

Mário, só por uma questão meramente formal, uma vez que não é o cerne do seu comentário, permita-me dizer-lhe que acho que talvez não esteja a interpretar correctamente a intenção do António Gedeão. O poema não é, a meu ver, tanto sobre o bem e o mal, como sobre o livre-arbítrio em si mesmo. Penso que a ele, (como a mim, de resto) mais do que o cumprimento correcto e moral de uma noção colectiva ou até individual de bem e de mal, o que o preocupava era a hipótese - ou a certeza! - de que cada pretensa decisão que tomamos nas nossas vidas esteja absolutamente pré-determinada pelas leis da Física. Ou, alternativamente, mas não melhor, aquilo que eu penso: que ou estão mesmo pré-determinadas, ou se não estão, também não estão sob o nosso controlo, e dependem de alguma Grande - ou sub-atómica - Lotaria Universal. Mais do que o Bem e o Mal, da resposta a esta questão dependem grandes noções, como a da Liberdade Individual e da Responsabilidade, e as questões da Justiça. Eu não creio na Liberdade Individual, não creio na Moral. Não acredito na Culpa. Só acredito no castigo, com "c" minúsculo, o instrumento social, para fins sociais. Estou a falar destes conceitos nos seus sentidos absolutos, claro. Sei jogar ao jogo da vida, e da vida social, conheço as suas regras, e tento lidar com elas como toda a gente. Estou aqui a falar de dar um passo atrás, sair do tabuleiro de xadrez, deixar de ser uma das peças, levantar-me acima da mesa e olhar para o que se está a passar de fora do jogo, e ver que as regras só existem dentro do tabuleiro, e que a Realidade transcende o tabuleiro.

Enfim, voltando atrás... esta capacidade do António Gedeão para encaixar a nossa condição humana no seio da implacabilidade das Leis da Física encontrei-a eu no poema que se segue, o primeiro poema que me lembro de ser capaz de apreciar. No 8º ano, talvez?


Lágrima de preta

Encontrei uma preta
que estava a chorar,
pedi-lhe uma lágrima
para a analisar.

Recolhi a lágrima
com todo o cuidado
num tubo de ensaio
bem esterilizado.

Olhei-a de um lado,
do outro e de frente:
tinha um ar de gota
muito transparente.

Mandei vir os ácidos,
as bases e os sais,
as drogas usadas
em casos que tais.

Ensaiei a frio,
experimentei ao lume,
de todas as vezes
deu-me o que é costume:

Nem sinais de negro,
nem vestígios de ódio.
Água (quase tudo)
e cloreto de sódio.


Adianto desde já que estou bastante conformado com esta condição. Daí eu dizer que, se sou Materialista, não é por reduzir os Homens a calhaus, mas por elevar os calhaus a Homens. E parece-me tudo ser ainda mais belo do que se uma mão divina fosse responsável pelo Universo ("a mão que moldaria nas colinas", do Sérgio Godinho).

A sua interpretação do poema, que julgo portante diferente da minha, levou-o a uma incursão num terreno bem mais pantanoso para mim: o do Sentido da Vida. A sua bela frase ("Como se não bastasse ser lançados na planície, ainda nos foi dada a consciência da situação em que nos encontramos e daqui poder lançar o olhar em todas as direcções") introduz bem a questão. Quem não se questiona, uma vez na vida? E quando diz... "Não há um desígnio ou projecto que nos tenha sido dado para realizar. E se há, não temos notícia dele.", não podia concordar mais consigo. Mas é um vazio perigoso, reconheço. Sou um mau candidato a estar naquelas linhas de Apoio à Vida... se me aparece um suicida, não posso honestamente dizer-lhe mais do que... "A sério, vais dar um tiro na cabeça?... não é o meu estilo, eu sou mais daqueles tipos que vivem sem saber porquê, por vício. Um vício dos diabos. Tu não? Ok, olha, são feitios, não é? foi um prazer conhecer-te...". Queria poder dizer algo melhor ao meu filho: "Filho, vivemos para isto: . E faz sentido, vês, é óbvio, não é? É para isso que deves viver, guardar essa tua vida que para mim é preciosa, vive-a o melhor que puderes, sê feliz.". E é talvez isso que lhe vou dizer: "Sê feliz.". Nada mais parece fazer sentido. A não ser, talvez: "Busca a verdade. Encontra-a. Conhece-a. Vive-a.". Sim, talvez só a verdade seja melhor que a felicidade.

Por fim, não posso deixar a sua última pergunta sem uma resposta clara.
P: "Achas mesmo, Luis, que eu estou a tentar «iludir», «entreter», «impedir» a fatalidade? Ou só a contorná-la com razoabilidade?"
R: A um certo nível somos livres, claro. Como as bolas numa tômbola. Sabe-se lá onde vão parar? E as ondas do mar? Dão um trabalhão a simular, usando Computação Gráfica. O movimento é caótico, quem o poderia prever?... Bem, a resposta que tenho para si não é simpática: acho que ainda não se conformou com o facto de ser uma marioneta do Universo (Mário-neta?! O meu subconsciente devia ser internado!). Mas não sei se tem alternativa, eh eh. E eu não posso dizer-lhe outra coisa senão isto, por respeito à verdade. A sua saída é bastante razoável, mas só funciona, parece-me, na Realidade Convencional. O pior é conciliar a vida na Relidade Convencional com a percepção da Realidade Absoluta. E quase ninguém vive a Realidade Absoluta, só aqueles aos quais a maioria chama "alienados".

É tarde, e amanhã trabalho. Boa noite.

terça-feira, janeiro 05, 2010

Poema do livre arbítrio

'Há uma fatalidade intrínseca, insofismável
inerente a todas as coisas e nelas incrustrada.
Uma fatalidade que não se pode ludibriar,
nem peitar, nem desvirtuar,
nem entreter, nem comover,
nem iludir, nem impedir,
uma fatalidade fatalmente fatal,
uma fatalidade que só poderia deixar de o ser
para ser fatalidade de outra maneira qualquer,
igualmente fatal.

Eu sei que posso escolher entre o bem e o mal.
Eu sei que posso fatalmente escolher entre o bem e o mal.

E já sei que escolho o bem entre o mal e o bem.
Já sei que escolho fatalmente o bem.
Porque escolher o bem é escolher fatalmente o bem,
como escolher o mal é escolher fatalmente o mal.
O meu lívre arbítrio
conduz-me fatalmente a uma escolha fatal.'


António GEDEÃO
Novos Poemas Póstumos, 1990


O homem disse tudo. Que vou eu dizer agora? Invejo-lhe a autoria do poema.